domingo, 4 de dezembro de 2011


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Depressão: “Todos têm direito a uma vida com dignidade”

POR MADALENA SILVA



No âmbito de uma reflexão sobre a depressão, uma das doenças mais frequentes no seio da nossa sociedade, a Observando foi à procura de alguém que falasse sobre o assunto. Encontrou um Farmacêutico/estudante de Medicina, uma doente com depressão e uma familiar que estiveram dispostos a partilhar algumas experiências connosco. Abaixo, encontram, assim, testemunhos de um profissional de saúde, de uma pessoa que padece da doença e de outra que a vê sofrer, que só por si falam.







Gilberto Guimarães

Observando (O) – Quer começar por apresentar-se?
Gilberto Guimarães (GG) – Claro que sim. O meu nome é Gilberto Guimarães. Nasci no dia 23 de janeiro de 1977. Tenho 34 anos. Sou natural da Pedreira, Concelho de Felgueiras, distrito do Porto. Trabalho como Farmacêutico numa Farmácia Comunitária, em Felgueiras, e sou estudante do 5.º ano do Curso de Medicina, na Universidade do Minho, em Braga.

O – Com que idade começou a trabalhar e há quanto tempo é Farmacêutico?
GG – Comecei a trabalhar cedo com cerca de 15 anos, mas nessa altura foi só nas férias. Trabalhei nas férias de verão de 1994 e 1995 numa empresa de fabrico de mobiliário denominada IMO, em Felgueiras. Mais tarde, entrei na Faculdade em Ciências Farmacêuticas, na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, com 17 anos. Nessa altura, continuei a aproveitar as férias de verão para trabalhar como auxiliar na Igreja dos Clérigos, no Porto. Terminei a minha Licenciatura com 22 anos e desde então que trabalho como Farmacêutico na Farmácia Comunitária da Longra, no município de Felgueiras. De 2005 a 2008, mantendo o meu emprego de Farmacêutico, ainda fui docente universitário, no Instituto Piaget, em Vila Nova de Gaia, pelo período de três anos letivos, tendo ministrado duas disciplinas na Licenciatura em Farmácia.

O – Por que decidiu licenciar-se em Ciências Farmacêuticas e com que idade tirou o Curso?
GG – Decidi licenciar-me em Ciências Farmacêuticas, porque sempre gostei muito de trabalhar na área da Saúde. Disciplinas como a Biologia, a Química e a Matemática sempre me fascinaram e eram o meu “forte”. Depois, eu queria ficar a estudar no Porto por ser mais perto da casa dos meus pais. Na altura, não consegui entrar na minha primeira opção, que era Medicina no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), no Porto. O facto de ter uma tia que era Farmacêutica também ajudou a influenciar a minha decisão. Terminei a Licenciatura com 22 anos, quando ainda era composta por 6 anos letivos.

O – O que faz concretamente um farmacêutico numa farmácia?
GG – Na Farmácia Comunitária em que trabalho, que se encontra inserida numa localização com particularidades entre o rural e o urbano, são poucos funcionários. Isso implica que parte do trabalho seja executável por todos aqueles que ali trabalham. Este trabalho passa pelo atendimento ao público; disponibilidade para realizar e medir parâmetros biológicos e dar aconselhamento sobre eles; tarefas de receção e acondicionamento dos medicamentos; registo e dispensa de estupefacientes e psicotrópicos; manufatura de medicamentos manipulados; entre outros. Outras tarefas mais específicas são executadas por mim ou pelos dois outros farmacêuticos que trabalham na Farmácia, como é o caso do aconselhamento farmacêutico em circunstâncias especiais; da gestão da farmácia; da responsabilização pelos atos praticados, a ser exercida pela Diretora Técnica ou na sua ausência pelos Farmacêuticos Substitutos; da verificação dos procedimentos e das tarefas diariamente executadas na farmácia e da sua correcção, se necessário; da comunicação com as demais entidades com as quais a farmácia articula, inclusive com os demais profissionais de saúde; entre outros.

O – Gosta da sua profissão?
GG – Muito. Só tenho pena que não seja encarada pela maioria das pessoas, com principal enfoque nos outros profissionais de saúde, como uma mais-valia na promoção da saúde e prevenção da doença, junto da população em que o farmacêutico atua. Isso, por vezes, deixa-me triste. 

O – De entre todas as tarefas inerentes à profissão, qual é a que mais lhe agrada, enquanto Farmacêutico? E a que menos lhe agrada?
GG – O contacto com o público é sem dúvida a que mais me agrada, mas também é a que por vezes me dá mais problemas. É difícil agradar a todos e por vezes temos que ser perseverantes nas nossas convicções, mesmo que isso implique alguns dissabores com algumas pessoas que vão à Farmácia. 

O – Qual foi a situação mais agradável que viveu até hoje no seu local de trabalho? E a menos agradável?
GG – Foram várias as situações agradáveis que já vivi e também foram várias as desagradáveis. Afinal, já lá vão 12 anos de trabalho e isso implica um número elevado de pessoas atendidas. As mais agradáveis são aquelas em que as pessoas regressam à Farmácia e me congratulam pelo aconselhamento dado e por este ter funcionado. As menos agradáveis prendem-se fundamentalmente com as atitudes de algumas pessoas perante a recusa no fornecimento de alguns medicamentos, que por lei e também por convicção própria, não posso dispensar, enquanto Farmacêutico.


Depressão, na perspetiva do Farmacêutico

O – Concorda que a depressão em crianças, jovens e adultos é uma das doenças estigmatizadas na sociedade atual?
GG – Existem sem dúvida várias doenças estigmatizantes na nossa sociedade. Se a existência de depressão em crianças é ainda um assunto controverso, principalmente em idades muito precoces, dados recentes levam-nos a pensar que o número de pessoas com depressão, principalmente em adultos e de faixas etárias mais elevadas, tem vindo a aumentar. Acredito que, quanto mais pessoas sofrerem com uma depressão ou virem alguém que lhe é próximo passar por essa situação, a tendência para estigmatizar a doença será menor. O grande desafio está em fazer ver todos os outros que não se encontram nesta situação que esta doença carece de tratamento especializado; é debilitante e incorpora muita angústia em quem a possui, angústia esta que pode ser diminuída com um comportamento assertivo por parte de toda a população que com ela interatua.

O – Quais são os sintomas da depressão?
GG – É principalmente a perda da satisfação pessoal com tudo o que a rodeia e que até então lhe dava prazer. A isso estão normalmente associados outros sintomas, como a ansiedade, as alterações dos hábitos de sono, de higiene pessoal e alimentares, entre outros. Estes sintomas podem ocorrer durante diferentes períodos de tempo, desde alguns meses a vários anos. De notar que todos estes sintomas não são obrigatórios para o médico fazer o diagnóstico de depressão.

O – O que pensa acerca da doença, enquanto profissional de saúde?
GG – Fundamentalmente, que é uma doença debilitante e incapacitante, embora não se manifestem, pelo menos inicialmente, quaisquer limitações de ordem física.

O – Por que acha que a depressão é estigmatizada no seio da sociedade?
GG – Porque é uma doença que nem todos conhecem bem e porque ao longo dos anos, assim como em muitas outras doenças psiquiátricas, os que delas padecem foram catalogados como sendo “maluquinhos”. Se pensarmos bem, a própria História da Psiquiatria é uma história muito recente, principalmente se comparada com outras especialidades médicas, não tendo existido grande evolução dos tratamentos até há bem pouco tempo. Isso levou as pessoas a interiorizar um conceito de doenças mentais, na qual se engloba a depressão, que se encontra ultrapassado e que urge reverter.

O – Acredita que a medicação para a depressão pode funcionar, se o médico fizer um diagnóstico correto e prescrever fármacos adequados a cada caso, e o doente for rigoroso no cumprimento do tratamento?
GG – Penso que a dicotomia médico-paciente é aqui muito mais importante que em muitas outras especialidades médicas. O paciente tem que acreditar no que o médico lhe prescreve e aconselha, para que possa reverter a sua condição, e o médico tem que acreditar que aquilo de que o paciente se queixa é de facto relevante e o impossibilita de ter uma vida normal. Importante é também entender que o tratamento neste e noutros casos, principalmente em patologias em que está envolvida a Psiquiatria, não passa apenas por tratamento farmacológico. Essa componente é sem dúvida importante, mas todas as outras possíveis terapêuticas devem ser seguidas. Muitas vezes, o aconselhamento sobre alteração dos hábitos de vida diários ou alterações comportamentais são tão ou mais importantes que a medicação prescrita.

O – Com que frequência vão pessoas, com o diagnóstico de depressão, à Farmácia onde trabalha, e qual é a faixa etária e o sexo da maioria?
GG – Todos os dias. Dos medicamentos mais vendidos diariamente na Farmácia, encontram-se os antidepressivos e os ansiolíticos ou sedativos. É sem dúvida uma patologia com grande prevalência na população onde a Farmácia na qual trabalho se insere geograficamente. A grande maioria das pessoas é do sexo feminino e observa‑se uma maior incidência em jovens adultos e pessoas com mais de 50 anos.

O – Estes doentes procuram algum tipo de apoio junto de si, para além de levantar a medicação prescrita pelo médico?
GG – Não, nem por isso. Penso que este tipo de patologia também limita o seu grau de interesse na comunicação com as outras pessoas. É bastante comum termos pedidos de aconselhamento sobre patologias infeciosas, alérgicas e outras, mas acho que no caso da depressão as pessoas são bastante mais reservadas.

O – Conhece sites de ajuda àqueles que sofrem de depressão e aos que veem outros a sofrer com a doença, como é o caso do “Depressão Ansiedade” e do “A depressão dói”?
GG – Conheço. Penso que qualquer informação, desde que tenha qualidade e seja proporcionada por fontes fidedignas, pode ajudar não só as pessoas que sofrem de depressão como também todos os outros, como familiares e amigos, que com elas contactam diariamente. Acima de tudo, estes sites de apoio devem fazer ver a essas pessoas que não estão sozinhas nessa condição e que ela é sobretudo ultrapassável. 

O – Acredita que os familiares e amigos destes doentes têm um papel importante na sua rotina e no tratamento farmacológico e, ou, psicológico?
GG – Muito importante. Como já disse, o tratamento farmacológico é apenas uma das vertentes do tratamento global a ser instruído a estes pacientes. E mesmo no tratamento farmacológico, a supervisão por algum familiar ou amigo é fundamental para não se darem episódios de recaída ou, pior que tudo, exacerbação dos sintomas, com o aparecimento de comportamentos que possam, inclusive, pôr em causa a vida do próprio doente. No tratamento não farmacológico, essa componente é ainda mais vincada, uma vez que funciona como suporte para toda e qualquer adversidade.

O – Se estiver perante uma pessoa que apresenta os sintomas de uma provável depressão e ainda não tiver procurado o médico, o que faz enquanto Farmacêutico?
GG – A minha obrigação é promover o encaminhamento para uma consulta médica, com vista à instituição de uma proposta terapêutica, na maior brevidade possível. Como nem sempre isso é possível, podemos tentar alertar alguns familiares ou amigos para o risco inerente à patologia em questão.

O – Quais são os conselhos que gostaria de dar a todos os doentes com depressão?
GG – “Dirijam-se ao Médico de Família ou a outro profissional especializado, com vista à instituição de uma terapêutica com o objetivo de obterem mais qualidade de vida. Esta é uma patologia tratável e com bom prognóstico, desde que com um bom acompanhamento médico.”

O – Quais são os conselhos que gostaria de dar a todos os familiares e amigos de doentes com depressão?
GG – “Sejam mais compreensivos para com os doentes com depressão e estejam sempre disponíveis para eles, mesmo quando os mesmos, principalmente fruto da sua condição, não os quiserem por perto.”


Depressão, na perspetiva do estudante de Medicina

O – Está no 5.º ano do Mestrado Integrado em Medicina. Quando é que ingressou no Curso e por que é que decidiu estudar Medicina?
GG – Ingressei em 2008. Decidi estudar Medicina, porque sempre gostei da vasta área da Saúde, como já referi. Também porque me sentia a estagnar mental e profissionalmente. O meu desejo é “fazer a diferença” e penso que o poderei fazer como Médico mais do que como Farmacêutico.

O – De entre as especialidades que tem estudado ao longo do Curso, com qual é que mais se identifica e porquê? E a que menos gosta?
GG – Bem, esta pergunta é difícil de responder. De todas as especialidades, aquela com a qual mais me identifico é a Medicina Interna. Contudo, não deverá ser essa a especialidade que irei escolher. Já não sou muito novo e tenho receio de não estar à altura do trabalho e dos desafios que são inerentes a essa especialidade. Como adoro Cirurgia, talvez escolha uma especialidade em que exista uma componente Médica e uma componente Cirúrgica. Confesso que não gosto muito de Psiquiatria por achar que é muito difícil diagnosticar doenças, cujos sintomas não são tão claros e visíveis como um tumor, uma infeção, entre outros.

O – Tem tido a oportunidade de trabalhar com doentes com depressão, no âmbito do Curso e enquanto estudante de Medicina?
GG – Sim, até porque já passei pela Área Curricular de Neurociências Clínicas que, na Licenciatura em Medicina da Universidade do Minho, agrega as especialidades de Psiquiatria e Neurologia.

O – Agora que estuda Medicina, a sua opinião acerca da depressão mudou ou mantém-se a mesma e porquê?
GG – A minha opinião foi alterando ao longo do tempo, mas penso que não tem tanto a ver com o facto de estar a tirar Medicina. Acredito que esta mudança se deve, sim, ao facto de estar em contacto diário com este tipo de doente, a nível profissional. Fui vendo que esta é uma doença bastante prevalente, com várias limitações, e que se não for tratada convenientemente, pode ter graves repercussões, quer pessoais quer familiares ou profissionais para os doentes.

O – Acredita que os médicos de família desempenham um trabalho adequado, junto de doentes com depressão? E os médicos psiquiatras?
GG – Sim, dentro das limitações que cada vez mais são impostas a estes profissionais, principalmente em termos temporais. Eles são essenciais para um correto diagnóstico e atempado tratamento de doentes com depressão.

O – O que espera fazer em termos profissionais, depois de terminar o Curso de Medicina?
GG – Fazer o melhor possível na especialidade que escolher, dentro das limitações de recursos e de tempo que todos temos. Espero acima de tudo “marcar a diferença” para algumas pessoas e assim ser um bom profissional.


“Sou amante da humanidade”

O – O que gosta de fazer nos seus tempos livres?
GG – Estar com as pessoas que amo; ler, embora nem sempre tenha tempo; praticar desporto (futebol, ciclismo e mergulho) e passar algum tempo a jogar os meus jogos favoritos no computador.

O – O que gosta de ler?
GG – Quando não estou a ler algo relacionado com o que me encontro a estudar, gosto de ler livros de divulgação científica e as “velhinhas” obras-primas da literatura universal. E ainda me faltam ler tantas…

O – Qual é o tipo de música que gosta de ouvir?
GG – Pop-Rock. Gosto também muito de música alternativa.

O – Qual é o tipo de filme que gosta de ver?
GG – Bem, os filmes de ficção são os meus favoritos. Também gosto muito de um bom filme de terror.

O – É simpatizante de algum clube desportivo?
GG – Sim, do Benfica, para minha infelicidade. Espero que essa infelicidade mude já este ano.

O – Quais são os seus atletas preferidos?
GG – Adoro ver um bom jogo de futebol, mas não tenho atletas favoritos. Contudo, tenho um desporto favorito: o decatlo, que é sem dúvida a essência do desporto – se bem que não sou praticante e posso dizer que sou desportivamente bastante limitado. 

O – Qual foi o melhor momento da sua vida?
GG – Quando salvei uma amiga.

O – Qual foi o momento mais triste da sua vida?
GG – Quando não consegui salvar um amigo.

O – O que mais aprecia numa pessoa?
GG – Duas coisas: a honestidade e a humildade.

O – E o que menos aprecia numa pessoa?
GG – A falta de lealdade.

O – Como se descreve a si próprio?
GG – Sou uma pessoa absolutamente “normal”, mas perseverante; sou sonhador, mas com os pés na terra; sou calmo, mas por vezes revoltado; sou amigo dos meus amigos e, acima de tudo, amante da humanidade.


Leonor*

Observando (O) – Sabemos que quer manter o anonimato. Por isso, só lhe vamos pedir que nos diga a sua idade e profissão.
“Leonor” (L) – Tenho 49 anos e estou desempregada.

O – Como soube que sofria de depressão?
L – Fui a uma consulta de Psiquiatria, numa clínica particular, há cerca de 13 anos. Para ser sincera, não me lembro muito bem de ouvir o médico a confirmar o nome da doença nessa consulta nem nas seguintes. Não sei se o meu estado de ansiedade era de tal forma grande que me desconcentrou ao ponto de não o ouvir verbalizar o diagnóstico. Sempre tive muito receio do que ele me pudesse dizer. Talvez se deva a esse facto… Mas falei do assunto ao Farmacêutico e a medicação que faço (antipressivo) e os sintomas que apresento encaixam-se num quadro depressivo. 

O – Por que é que recorreu ao serviço particular e não ao público?
L – Apesar de não me encontrar numa situação financeira confortável, não queria que alguém de conhecido me encontrasse na sala de espera de um hospital público. 

O – Porquê?
L – Assumir que se precisa de ajuda já é muito difícil e leva muito tempo e eu não queria sujeitar-me a mais sofrimento psicológico, pois há muitas pessoas que apontam o dedo àqueles que vão ao médico psiquiatra, como se qualquer doença mental fosse menos importante do que qualquer outra doença orgânica e não se devesse dar a mesma atenção aos doentes que delas padecem. Quando digo “apontar o dedo”, refiro-me não só a pessoas que se riem por ignorância e não se inibem de o fazerem, pois acreditam que quem vai ao psiquiatra é “maluquinho”, mas àqueles que gostam de “falar da vida dos outros”, fazendo todo o tipo de julgamento, o que a meu ver é totalmente inaceitável. 

O – Esses comentários que presencia afetam-na muito?
L – Infelizmente, sim. Não sou “forte” o suficiente para estar numa sala de espera de um hospital a aguardar por uma consulta de psiquiatria, se vir pessoas a olharem para mim fixamente, cochichando e rindo de seguida. Talvez um dia consiga deixar de ligar a estas “pobres” almas…

O – Que sintomas tinha quando decidiu ir ao médico?
L – Senti um grande desânimo dentro de mim, muita vontade de chorar, uma total ausência de força e uma enorme vontade de morrer. Cheguei a não ter forças sequer para escovar os dentes… Levantar-me da cama e dirigir-me à casa de banho representava um gigante esforço, muito superior ao que ele deveria representar, pois trata-se de um gesto da higiene comum de qualquer pessoa. É difícil descrever a luta com que me debatia interiormente… Dizia muitas vezes a mim própria: “Tens que levantar!” Mas a doença derrubou-me inúmeras vezes. Ainda tenho estes sintomas, mas tenho tentado aprender a lidar com eles, com a ajuda da medicação e dos meus familiares que são sem dúvida aqueles que me dão mais força.

O – O que acha que provocou a doença?
L – Penso que uma queda na casa de banho, que me provocou uma luxação no joelho há cerca de 13 anos e que me deixou com muito medo a quedas; o súbito falecimento do meu pai, em 2003; o desemprego de que também sou vítima, podem ter contribuído de forma significativa para o surgimento ou agravamento da doença.

O – Acha que a doença a afastou das pessoas, em geral?
L – Não sei se terá sido a doença… Mas as pessoas “fogem” frequentemente dos problemas dos outros. Aqui, refiro-me a pessoas que até conheço um pouco. Se não forem os meus familiares a preocuparem-se comigo, não tenho mais ninguém. É certo que algumas pessoas vão perguntando por mim, mas são meras perguntas de circunstância na maioria das vezes. Parece mal não perguntarem. Quero acreditar que, além dos meus familiares, há boas pessoas que querem o bem das outras, mas às vezes é difícil, porque situações do dia a dia levam-me a crer que há muita maldade na cabeça de algumas pessoas. Tenho noção de que as minhas espectativas em relação às pessoas podem ser grandes, se comparadas com a capacidade de resposta ou disposição das pessoas, e que por isso muitas vezes me desiludo quando estas me “pregam rasteiras”. Eu não deveria esperar “tanto”, que para mim não é assim “tanto”, mas que para os outros parece sê-lo. Hoje em dia, dependendo sobretudo da faixa etária da pessoa e do tempo que ela tem para ser “gasto” com os outros, quase parece que temos que pensar muito bem antes de formular uma pergunta, para que o destinatário da mesma não nos “atire uma pedra”. Por exemplo, se a mim me parece absolutamente “normal” perguntar a um jovem de 18 anos se o lugar ao seu lado no autocarro está vago, parece-me que a este pode não o ser, pois o olhar que me lança é totalmente gélido, limitando-se muitas vezes a ignorar a pergunta, fingindo que não a ouviu. Depois, penso: “Quando eu tinha 18 anos, eu não fazia isso a ninguém.” Mas será que os valores da educação e do respeito pelos outros mudaram assim tanto?... Sofro muito com estas questões, com a indiferença de alguns… Mas depois lembro-me principalmente das pessoas que fazem voluntariado e volto a sorrir. Quando me sentir melhor, gostaria muito de fazer voluntariado; de dar amor e carinho a quem precisa; de ajudar em execuções de outras tarefas que eu possa realizar. Depois, há tantas crianças e adultos a morrerem à fome todos os dias no mundo. Eles precisam certamente de nós que nos encontramos em melhores condições, pelo menos em termos materiais. Espero poder ajudá-los, um dia.

O – Há alguma situação que evita?
L – Sim. Evito pessoas que me deitam para baixo, porque sei que vou sentir-me pior.

O – Tem algum receio mais forte?
L – Tenho medo que a depressão me torne uma pior pessoa. Tenho medo de perder totalmente a fé nos outros e no mundo, quando vejo “tudo negro à minha volta”. Tenho medo de sofrer de “infelicidade crónica”. Tenho medo de “perder o contacto com a realidade”…

O – Já alguma vez pensou no suicídio?
L – Sim, mas nunca fui capaz de tentar pôr termo à minha vida. Não sei se por cobardia ou por falta de “conhecimento” para o fazer de forma certeira, ou talvez pelos dois motivos aliados ao facto de eu amar muito os meus familiares e não querer que sofram mais.

O – O que a faz sentir melhor, além da medicação que faz?
L – Estar ao pé das pessoas que eu amo e desabafar com elas é sem dúvida o que mais aprecio. Rir! Quando me rio, sinto-me outra, mesmo que seja só uma boa gargalhada em resultado de um filme que esteja a ver. Melhoro, sempre. É incrível. Ouvir música, sobretudo violoncelo. Nunca toquei este instrumento, com grande pena minha, mas adorava saber tocar. O único instrumento que aprendi a tocar foi a flauta, na altura em que andava na Escola e tinha cerca de 11 anos. Mas sempre sonhei com o violoncelo. Nunca se proporcionou. As aulas eram e ainda são caras para o meu bolso desempregado. Talvez um dia… Depois, há o chocolate e a cafeína que adoro e consumo, contrariamente às indicações dos médicos – é bom que se diga. Eles desaconselham totalmente o chocolate e a cafeína no meu caso, mas confesso que ainda não consegui deixá-los, pois fazem-me sentir enérgica, o que contraria aquele peso que me retira as forças.  

O – O que gostaria de dizer às pessoas, em geral?
L – “Tenham mais paciência com os outros. Sejam mais solidários. Não apontem o dedo à diferença, às minorias, àquilo que pode parecer-lhes mais ‘estranho’. Hoje, é aquela pessoa que sofre de determinada doença; que é portadora de uma certa deficiência, mas amanhã pode ser qualquer uma delas e todas vão querer que os outros não as ponham de parte; vão querer ser amados de igual forma.”


Viviane*

Observando (O) – Sabemos que quer manter o anonimato. Por isso, só lhe vamos pedir que nos diga a sua idade e profissão.
“Viviane” (V) – Tenho 46 anos e sou professora.

O – Desde quando é que sabe que a sua familiar sofre de depressão?
V – Desde que ela foi a uma consulta de Psiquiatria, numa clínica particular, há cerca de 13 anos, apesar de o diagnóstico não ter sido verbalmente confirmado pelo médico, tal como ela já explicou. Aliás, penso que me apercebi mesmo antes disso, pois o comportamento dela estava alterado. Como leio bastante sobre Saúde, apesar de não ser da área, achei que os sintomas que ela apresentava poderiam ser os de uma depressão, mas claro que não passavam de suspeitas de uma leiga. Perante as receitas que na altura ela trouxe do médico psiquiatra, não havia dúvidas que algo não estava bem, pelo menos aos olhos daquele médico. 

O – Como se sentiu?
V – Muito triste… Um enorme desalento invadiu-me. Na altura, revoltada, pensei: “Bolas, já não temos problemas que cheguem?!” Depois, também me perguntei se iríamos conseguir ultrapassar a doença. Tudo quanto lia me indicava que cada caso era um caso; que dependeria muito da força de vontade do doente, da gravidade do estádio da doença e dos resultados da medicação prescrita. Senti-me ao pé de uma falésia, prestes a cair… Tive receio de não estar à altura das necessidades dela. Ainda tenho… 

O – Como é o dia a dia, enquanto familiar de uma doente com depressão?
V – O meu acordar é sempre seguido de uma gigante expectativa: “Será que hoje ela se vai sentir melhor?” Se não a vejo pelos corredores da casa, vou procurar ao quarto. Abro a porta e vejo um vulto por baixo da roupa da cama. A janela do quarto tem a persiana fechada, apenas com uma ou duas dúzias de buracos abertos. Este é o cenário que muitas vezes encontro, o que me deixa muitas vezes sem alento. Já cheguei a abrir a persiana e a dizer-lhe para se pôr a pé, dizendo duas ou três frases encorajadoras, julgando estar a ajudá-la, mas quando via a angústia cravada nos seus olhos, o meu peito ficava apertado. Falo no passado, pois já não o faço. Não é fácil alguém sair “dali” e quem está “ali” sofre muito, mas trata-se de uma dor invisível, que por vezes passa despercebida a quem não está verdadeiramente preocupado ou interessado em compreender o que se passa; o porquê “daquilo” tudo; o porquê de um ser humano perder a vontade de ver a luz do dia... Neste momento, respeito a necessidade que ela tem de estar sozinha, mas assim que me apercebo que há um mínimo de energia nela que pode ser aproveitado, faço com que ela se sinta ocupada em casa, pedindo-lhe para ir pagar as contas da casa, tratar das arrumações domésticas, fazer as compras no supermercado, entre outras, já que ela também está sem emprego, o que piora muito a situação. Às vezes, zangamo-nos. Acontece nos dias em que ela pode sentir-se mais frágil e sem forças e não consegue fazer nada e em que eu também me sinto esgotada. Há dias em que eu também me sinto totalmente sem forças e não consigo ajudá-la mais do que faço. Havendo menos paciência da minha parte, ela vai-se completamente abaixo, o que não me admira, porque eu represento o seu suporte. Ela conta comigo para desabafar e explicar o que sente. Se não o pode fazer comigo, com quem irá fazê-lo?... Ela diz-me muitas vezes que falar comigo é um melhor remédio do que qualquer antidepressivo e que até supero o médico psiquiatra... Penso que é natural ela sentir-se assim, pois o amor que sinto por ela e a preocupação que tenho com ela só podem ser maiores do que os de qualquer médico, mesmo que se trate, como é o caso, de um médico com uma visão da relação médico-doente um pouco diferente das dos outros médicos, em geral. Claro que ensinam aos nossos médicos que não se podem envolver com os doentes para além da relação médico-doente estipulada como padrão a seguir por “todas as razões e mais alguma”, mas será que é necessário serem tão frios e terem uma postura desumana, parecendo quase robôs? Pergunto-me muitas vezes: “Será que este médico ou aquela médica se licenciou em Medicina por paixão ou porque lhe disseram que Medicina é um curso bem visto no seio da nossa sociedade?” Voltando à rotina dela, vê muitas vezes televisão durante a noite, pois alguns programas alegram-na. Compreendo-a, mas a verdade é que depois tem necessidade de dormir durante o dia, o que lhe altera o ciclo do sono. Apesar de ela saber que a prejudica, tem tido dificuldades em não o fazer, porque também sabe que se vai sentir mais animada. É complicado… 

O – Sente-se cansada por ter que ajudar continuamente a sua familiar?
V – Muito, física e psicologicamente. É uma ajuda principalmente psicológica que tem de ser constante. Digo “principalmente psicológica”, porque o cansaço é menos físico quando ela é capaz de executar algumas tarefas sobretudo domésticas que acabam por ficar para mim, quando ela se sente pior e não é capaz de as fazer. O apoio psicológico tem de ser continuado, pois se não for corro o risco de ela se ir abaixo por não se sentir compreendida e apoiada, o que é fundamental, diz-me a experiência. Não há medicação que ajude, se ela não puder contar com o meu apoio e o de outros familiares mais próximos. Para além de todos os outros sintomas, sei que ela se sente muito só e incompreendida. Na qualidade de familiar que a ama, quero ajudá-la, por muito que isso também me desgaste física e psicologicamente. Mas não vejo este apoio que lhe dou como uma “obrigação”, que se note; é uma forma de estar na vida; ajudar aqueles que eu amo, da melhor forma possível.

O – Como recarrega energias, para lidar com a situação no dia a dia?
V – Desabafando com dois familiares e algumas amigas. Sinto a necessidade de exteriorizar a minha angústia face à situação e o cansaço que carrego. Contam-se nos dedos das mãos as pessoas que sabem realmente do problema e que me compreendem, sem fazer qualquer tipo de juízo de valor. Ouvir música, dançar, ver comédias na televisão ou cinema, cantar sozinha e estar com aqueles que amo são as minhas fontes de recarregamento de energias.

O – O que falta para melhorar a qualidade de vida dos doentes com depressão, dos seus familiares e amigos?
V – Principalmente, mais linhas de apoio aos familiares e amigos de doentes com depressão, para eles próprios terem um “escape”; alguém com quem falar, para além dos habituais familiares e amigos que os ouvem sempre e acabam também por sofrer. Se não cuidarem daqueles que cuidam de alguém, corre-se o risco de o número de doentes no mínimo duplicar, se pensarmos que a cada doente está associado pelo menos um cuidador. Claro que há casos em que o doente não tem ninguém, o que ainda é mais triste e preocupante.

O – Que mensagem gostaria de deixar à sociedade, no que respeita à depressão?
V – “Médicos, sejam um pouco mais humanos; o doente que está à vossa frente é de carne e osso e sofre, bem como os seus familiares e amigos. Simplifiquem a linguagem técnica usada perante o doente e a sua família; eles estão provavelmente apreensivos com o diagnóstico e não estudaram Medicina para conhecer exatamente a gravidade do caso. Familiares e amigos, tenham muita paciência com os vossos entes queridos que sofrem. Encontrem também alguém com quem desabafar. Tirem uma hora ou duas de vez em quando para fazerem algo que realmente gostem e vos faça sorrir. Sociedade em geral, sejam mais solidários com todos aqueles que precisam e não discriminem ninguém. Todos têm direito a uma vida com dignidade.”


* Nome fictício.

Fontes (imagens):

·         http://www.bing.com/images/search?q=depress%C3%A3o&go=&qs=ds&form=QBIR#x0y12237

Consultado em: 04/12/2011

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